COLECÇÃO ANTONIO MARIA PEREIRA

CAÏEL

RETALHOS

DE

VERDADE

1908

PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA

Livraria Editora e Officinas Typographica e de Encadernação

Movidas a eletricidade

Rua Augusta -- 44 a 54

LISBOA

I

O pae entrara novo na diplomacia. Já viuvo occupara postos de importância representando Portugal no estrangeiro.

Ella era filha única. Os annos viçosos tinham-lhe corrido entre os sorrisos leves com que na sociedade elegante se preenchem ócios seculares.

O pae tinha-lhe mais que amor, adoração fanática. Era até um quasi nada ridiculo descrevendo a toda a gente o conjuncto de perfeições que era a sua Chica. Bastante conservador no intimo, estimava-lhe todavia certo arranque que ella sempre tivera para ideas novas, independentes, cousa rara para o sexo, para o meio e mais ainda para o paiz. Vira até sem desgosto, lá por fora, o interesse com que ella se approximara de certas mulheres notáveis do feminismo, francezas, inglezas e americanas. Attribuía a taes relações muito daquelle ar nobre, varonil, que a extremava singularmente entre as senhoras da sua roda.

De muito longe viera sonhando para aquella filha um marido extraordinário, sangue real talvez, algum que ella emfim escolhesse e premiasse, muito por cima do grupo de adoradores banaes, mais ou menos pobretões, que a rodeavam nas festas das embaixadas. A circumstancia de ser pobre não lhe entibiava os voos. Na sociedade cosmopolita em que viviam passavam homens de riqueza solida que podiam satisfazer o capricho de obedecer a meros impulsos sentimentaes. Era um d'esses que elle esperava com fé inconcussa ainda no anno memorável em que a Chica completou vinte e cinco annos.

Occupava por esse tempo uma legação na Europa central. Foram passar a época balnear a Cascaes. Quando lá viu a Chica acolher com certa condescendência a corte que lhe fazia impetuosamente o António Pinheiro, um sportman que tinham conhecido em casa das primas Noronhas, franziu o sobrolho, impacientado. Mas não deu uma grande importância ao successo. O rapaz dava na vista no meiosinho cascaense.

Vestia á ingleza, tinha um ar muito smart, e só deixara o monóculo no dia em que ouvira dizer á Chica, com um tom entre grave e escarninho não poder tomar a serio pessoa munida de semelhante adminiculo. Era natural que o pretendente quizesse ser tomado a serio. Mas o provável era que ella se divertisse.

Quando o nosso hirto e engravatado diplomata, do alto do seu collarinho inflexível, começou a perceber que o caso não era tão simples, entrou-lhe certa inquietação e mau humor. Mas não podia render-se á evidencia, acreditar que aquelle vulgarissimo episodio da sua vida veraneante, cultivado no Sporting e na Boca do Inferno, seria cousa que viesse a tomar corpo e forma social. Nem nisso queria pensar.

Um dia, talvez por algum sonho inquietador, aquelle homem previdente levantou-se da cama com umas grandes fumaças de auctoridade paternal. N'uma grave entrevista com a Chica antes da hora do banho, interpoz o seu veto. E julgou que ia ter um ataque fulminante quando a filha, entre lagrimas de uma sentimentalidade romântica, feminina, muito á antiga, lhe declarou firmemente que ou casaria com o António Pinheiro ou ficaria solteira.

Que fazer? A situação apresentava-se quasi desesperada. Recorreu á medicina mais acreditada em taes casos: uma viagem longa. Com as suas economias na algibeira, o grave diplomata dispoz-se logo a jogar essa ultima cartada. Ia animado. Tinha em pouca conta a firmeza das mulheres. Em qualquer estação, suissa, italiana, ou allemã, esperava sempre ver surgir o seu principe encantado.

Ao cabo de seis mezes voltou. Parecia-lhe que decentemente não podia estar mais tempo fora da embaixada. Vinha agora abatido, com o coração retalhado pela mais dura das abdicações.

N'aquella guerra surda triumphara o amanuense de Lisboa. A Chica voltava com alguns kilos menos, um fastio pertinaz, e uma tristeza muda e cavernosa com todas as tendências para tornar-se chronica.

Consultaram-se médicos. A sciencia poz os óculos, auscultou, e não encontrou lesão orgânica. Depois de matutar recolhidamente, aconselhou ares pátrios. A sciencia também acerta algumas vezes.

Ora aquelle pae, que era, como todos, um pobre pae, transferiu-se logo a Lisboa e tratou de ver como lhe levantariam decentemente na secretaria o ordenado d'aquelle presumptivo genro que lhe caia do Inferno, arrasando as melhores esperanças de toda a sua vida.

Revolvendo meio mundo, conseguiu elevar aquella mesquinha quantia a uns quarenta mil réis sem descontos. E simultaneamente resolvia apartar cada mez dos seus ordenados uma quantia de alguma importância que engrossasse e dignificasse aquella.

Quando o casamento se effectuou em Lisboa já o genro tinha logrado insinuar-se completamente no animo do sogro. Os amigos portuguezes, quando o viram partir quasi alegre para o seu posto diplomático, entenderam-no conformado. Elle effectivamente ia na idea de que a sua Chica encontrara o marido que a Providencia lhe tinha destinado. Os paes, quando vêem que certas cousas não tem remédio, assacam toda a responsabilidade á Providencia e bandeiam-se com ella.

As luas de mel são em geral deliciosas. Aquella também o foi. Havia amor e dinheiro em abundância. Figurava ainda um resto das economias paternas, sobrante d'aquella inútil viagem de resistência.

O António também trouxera a sua percentagem. Possuía, como único património, uma inscripção de um conto de réis. Vendeu-a sem vacillar. Aquillo, como capital, não valia nada. Reduzida a dinheiro corrente, dava-lhe certo ar de noivo endinheirado. Queria comprar flores caras e metter se n'uma carruagem sempre que lhe apetecesse, á hora de andarem os amigos pelas ruas. Gosava muito acenando-lhes então n'uma atitude de saboreada commodidade.

Depois, tivera também a feliz idea de ir até ao Minho, participar á tia Amalinha o projectado enlace, empregando pacientemente a corneta acústica. E trouxera de lá outra inscripção, outro conto, logo reduzido a metal sonante, para pôr com certos toques de luxo a casa, e offerecer á noiva uma jóia com muitas pedras, que o Illustrado descreveu minuciosamente.

Não queria que o casamento rebaixasse a sua mulher aos olhos meticulosos dos amigos aristocratas. Quiz a ceremonia nupcial com muito estadão. Houve muitos convites, muitas carruagens de libré, e muitos doces complicados, servidos pelo Ferrari.

A noiva desapprovava alguns gastos ; mas o António dirigia tudo, com um autonomismo que não parecia propenso a concessões. Queria que n'aquellas cousas apparecessem como quem eram -- dizia.

Passaram a lua de mel em Cintra, no Nunes. Depois estabeleceram-se n'uma boa casa que tinham alugado na rua Ivens, muito alindada com os primores do corbeille. Tinham cozinheira, criada de fora de touquinha e avental branco, e um gato preto, roliço, com coleira encarnada de guiso. Animavam diariamente a sala flores frescas dispostas com graça, e variedade de jornaes estrangeiros, entre os quaes La Fronde e Le Journal des Femmes.

Elle, para estar em tudo á moda, era um pouco jornalista também. Andava muito mettido pelas redacções. Publicara alguns artigos, assignando-os com o engenhoso pseudonymo Toniopi, ultimas syllabas do seu nome e primeira do appellido. E pensara já varias vezes em emprehender uma revista que levasse á frente, não o pseudonymo, mas o verdadeirissimo António Pinheiro sem subterfúgios. Entre republicanos mostrava-se republicano também. Tinha o defeito ou a virtude de contemporisar com as opiniões ambientes. Não desgostava de comícios e outras reuniões onde oradores fluentes falavam muito de liberdade com gestos amplissimamente convincentes.

II

Um dia... Ha dias funestos, com influencia decisiva na vida de certas famílias.

Um dia o nosso bom diplomata influiu cruel e inesperadamente nos destinos d'esta.

De repente cessou a providencial mezada, justamente no mez em que o António tinha mandado fazer um sobretudo forrado de seda, e a cozinheira pedira augmento de soldada, alegando a sua comprovada perícia em massas e doces delicados.

A noticia da morte súbita do digníssimo diplomata caiu como um raio na casa da rua Ivens. A' pobre Chica não lhe occorreu, em taes momentos, deitar contas ao dinheiro ; não pensou na mesada. O que logo viu, com uma dôr immensa, em que talvez havia parcella de remorso, foi que acabava de perder o melhor amigo que nunca tivera.

Para maior desconsolo, o António muito preoccupado com os gravíssimos problemas que aquelle súbito successo lhe acarretava, nem um só dia deu áquella immensa angustia filial a solicita attenção que ella merecia.

Não seriam justas e devidas taes lagrimas? Pois até parecia que o impacientavam. Demorava-se então em casa o menos possível. E pouco tinha de carinhoso o tom em que elle emittia frios raciocínios philosophicos : Eram cousas duras, mas naturaes ; não havia mais mais sem remédio que curvar a cabeça.

E a Chica ia curvando a sua, immersa n'aquella magoa, cada dia mais insupportavel, remédio.

Vieram distrahil-a forçosamente preoccupações materiaes.

O António, por muito favor, ganhava quarenta mil réis na secretaria. Do sogro recebia mensalmente sessenta.

Com a administração zelosa e intelligente da Chica, tinham vivido confortavelmente. A falta da mesada paterna não podia deixar de ter ali o valor de um phenomenal cataclismo.

Atrás de pequenas difficuldades, depressa surgiram as grandes. A passos agigantados a situação tornou-se gravíssima.

Como sustentar duas criadas ? A cozinheira foi despedida. Subido um pouco o ordenado, a criada de fora consentiu em fazer também a comida, sob condição de que se sugeitassem os menus a uma exemplar singeleza. Esta condição era também reclamada pelas circumstancias económicas da casa.

A Chica arranjou o vestido do lucto n'uma modista barata. Fez ella própria o chapéu de escomilha. Toda a sua preoccupação agora era gastar pouco. Calculou supprimir durante muito tempo a conta do sapateiro, não saindo. De comida, cortava para si todas as cousas caras, pretextando, para não ouvir os commentarios inúteis do António, que essas cousas lhe faziam mal. Não punha em si cousas que tivessem de ir á engommadeira. Reduziu o numero de bicos de gaz accesos toda a noute. Deixou completamente de comprar flores.

E, com todas estas medidas e outras da mesma indole, não conseguia vencer o terrivel deficit, nunca inferior a vinte mil réis mensaes na conta corrente.

O António commentava a seu modo os gastos, mas contribuia pouco para o equilibrio orçamental. Estava muito longe de poder chamarse em nenhum sentido uma pessoa de boa boca.

A' mesa era impertinente e queixoso. Reclamava contra o azeite e a manteiga, se não eram de primeira qualidade. Tinha o mau sestro de cheirar a comida antes de a provar. Queria queijos finos e gostava de doce á sobremesa, uns dias por outros, já que não sempre. Só bebia vinho puro. Era apuradissimo no chá e no café. Punha camisa limpa todos os dias, engommada a polimento. Impacientava-se porque a criada, que era ao mesmo tempo cozinheira, servia á mesa peior do que antes ; e protestava o propósito de tomar um criadito para a ajudar. Resmungava, se via o gato tristonho porque lhe não tinham comprado peixe. E era de tal calibre o Seraphim que, á falta de carapau, havia que comprar-lhe linguado ou pescadinha. O cruel problema financeiro, sempre pendente, punha no ar um constrangimento plúmbeo. Raras palavras trocavam os dois, que se não referissem ao mesmo thema, irritante, insolúvel.

O António considerava a mulher uma péssima administradora. E dizia-lh'o sem hesitação. Punha-lhe exemplos para convencel-a. Um alferes ganhava menos que elle. E essas familias viviam. Parecia até que logravam certo desafogo. Viam-se aos domingos na Avenida, e aos dias de semana entravam nas confeitarias a tomar pasteis. Lá sabiam arranjar-se. E ainda lhes chegava para irem tomar ar ate Algés ou ao Campo Grande. E alguns, em dias assignalados, deitavam a Cintra.

A Chica sustentava que, para taes façanhas, ou havia outros rendimentos ou estava a gente crivada de dividas. Elle encolhia os hombros, sublinhando com um tregeito despresivo dos lábios a sua descrença em qualquer dos termos do dilemma.

Acendia-se mais no António a antiga mania jornalística. Occorria-lhe agora fundar uma revista com o Sequeira. O Sequeira tinha pouca base, mas era homem avançado, sempre disposto á diffusão de idéas ; e com dinheiro sempre disponível, que era o essencial.

Elle poria o trabalho, -- tinha muito tempo livre da secretaria -- , e o outro poria o rosto. Ideava cousa muito pratica, genero magasine y armazém que alojasse fazenda para todos os gostos, para todas as necessidades. Havia de metter-lhe muitas secções; variedade, muita variedade : politica, modas, sport, chronica religiosa, chronica tauromachica, chronica musical, boletim do estrangeiro, receitas de cozinha, charadas, folhetins espectaculosos, e uma chronica da caridade, invenção sua de que as mulheres de certa ordem haviam de gostar. Tudo estava em começar com algum tacto. Primeiro, certo sacrifício; depois viriam os lucros.

Os commentarios da Chica, inimiga de mais uma revista como tantas, sem ideal, sem objectivo elevado, contribuindo a entreter e fomentar nos espíritos a terrível insignificância portugueza, não dissuadiam o António. Retorquia-lhe com muita sufficiencia que o espirito pratico, que ella não tinha, era absolutamente indispensável na vida. Era movendo bem aquelle negocio da revista que elle esperava nivelar o seu orçamento desequilibrado por tantas causas a que era estranho. Esperava aliás pagar depressa ao Sequeira -- sempre bolsa franca -- o que já lhe devia.

Depois, já desafogados, voltariam a viver como antes. Queria que ella saísse, que apparecesse, que tivesse vestidos elegantes. Deviam convidar os amigos para casa. O Sequeira havia de vir jantar pelo menos duas vezes por semana. O Sequeira era muito sensível a attenções.

Continuava a demorar-se em casa o menos possível. As expansões carinhosas tinham desapparecido. Pesava sempre no a dois aquella negra obcessão do dinheiro : ella cogitando, sem encontral-o, o meio de fazer economias novas; elle sustentando que por força havia erro de administração em deficit tão considerável.

Começou no espirito da Chica a lavrar fundo um fermento de revolta. Devia acceitar aquella situação ? Era isso digno ? Era sequer lógico e coherente? Cruzar os braços, curvando a cabeça a tão humilhante sacrifício, mão estendida para a esmola como mendiga ? Solteira, não teria já procurado sair de difficuldades, trabalhando? Não era natural que casada, procurasse contribuir ao equilibrio económico da sua casa ? E com que gosto trabalharia para o amado conforto do seu lar !

Um dia em que o António lhe repetia, taciturno, que tinham de supprimir despezas, pagar menos á criada, largar os jornaes que elle leria fora de casa, fazer emfim qualquer cousa para deitar mão ao implacável deficit, ella communicou-lhe os seus planos já muito pensados e debatidos em noutes de mau dormir: conhecia bastante o Francez, o Allemão, e o Inglez; pouco lhe faltava para ser uma pianista. Não se lhe impunha que lançasse mão de taes recursos, contribuindo para os gastos, da casa com o fructo de algumas lições ?

Ao ouvir tal proposta, o António explodiu na mais violenta objurgatoria. Parecia que a Chica queria expressamente atormental-o. Pelas cinco chagas que não tornasse a falar-lhe em semelhante despropósito. Bem lhe bastavam já tantas apoquentações da sua vida ! Não estavam em Inglaterra ou nos Estados Unidos. Viviam em Portugal; tinham que sujeitar-se á sua tradição, aos seus costumes. Não discutia agora se esses costumes eram bons ou maus. Constituíam a lei, que não é afinal o que resam os códigos, senão o que a nação pratica e consente.

-- Que diriam os seus amigos, se elle se sujeitasse a semelhante humilhação ? Porque era sobre elle que principalmente cairia o odioso. E os parentes d'ella ? e as suas relações da alta sociedade ? Com que compungidas phrases lamentariam o seu triste destino! trabalho ainda era considerado em Portugal uma desgraça, uma escravidão. E a mulher escrava perdia todo o prestigio. Com surpreza encontraria na rua conhecidos que voltariam a cara surrateiramente para a não comprimentar. As amigas não tornariam a insistir para leval-a de carruagem á Avenida ou ao Campo Grande, nem lhe dariam lugar no camarote em S. Carlos. Em Portugal ainda a mulher não podia fazer concorrencia ao homem trabalhando para ganhar a vida. Perdia em consideração o que ganhava n'uns mesquinhos cobres. Ainda a sociedade portugueza não estava preparada para esse estado de cousas.

-- Elle também era, até certo ponto, feminista. Mas desde que queria viver no seu paiz, tinha que sujeitar-se ás imposições d'esta sociedade. Haveria homens que supportassem o ridículo; elle, não.

A Chica ouvira impassivel aquella catilinaria com os olhos cravados firmemente no chão. Quando o marido parou para tomar folgo, ella interpoz com decisão -- E não seria muito mais indecoroso amontoar dividas sem possibilidade imaginável de pagal-as? Sempre lhe tinham parecido os maiores responsáveis do atraso de uma sociedade os que por fraqueza se submettiam ao dictame de idéas tão erradas, tão completamente absurdas. Se o ganhar dinheiro era honra e dignidade para o homem, como deixaria de o ser, nas mesmas circumstancias, para a mulher ?

O António decretou que a Chica estava dizendo desvarios. Ainda não estava Portugal maduro para philosophias feministas. Tinham que ver o paiz tal como elle estava, não com lunetas de augmentar. Isso era o que elle chamava pôrem-se na razão das cousas. Se fosse inglez ou norte-americano, obraria sem duvida de maneira muito diversa. Portuguez, não podia prescindir do meio portuguez.

Com desusada firmeza, a Chica sustentou que nunca inglezes nem norte-americanos teriam prosperado nas vias do progresso, sem o arrojo e isenção d'aquelles seus compatriotas que primeiro se puzeram em brecha contra estultos preconceitos e imposições rotineiras e absurdas.

O António impoz-lhe então, auctoritario, que não voltassem áquelle assumpto. A sua opinião firmíssima já a sabia ; pretender levar por diante semelhante teimosia, seria preparar entre os dois uma situação insupportavel...

E não era já tudo aquillo insupportavel ? A Chica não formulou a pergunta; mas isso dizia o olhar firme, impregnado de tristeza e reprovação, que ella cravou no marido sem pestanejar.

Elle então, quiçá no propósito de attenuar um pouco o eífeito da rudeza anterior, disse após um suspiro fundo: «Para certas cousas é preciso ser heroe... E eu reconheço que não o sou.» Depois, sem olhar: «Ate logo. Tenho o Sequeira á minha espera... E' verdade. Amanhã trago-o cá a jantar. Vê se arranjas qualquer doce para a sobremesa. Isso, e qualquer prato a mais. Não é preciso estar com grandes cousas.» -- E saiu.

Ella ficou inerte, na cadeira baixa onde estava sentada, com as mãos apertadas entre os joelhos, pasmada. De repente, rompeu n'um d'estes choros convulsos, desalentados, enormes, em que os grandes, sobretudo as mulheres, tanto se parecem ás vezes com as creanças.

III

Occorreu uma variante em situação de tanto apuro.

Inesperadamente chegou do Minho uma carta de letra bojuda com muito realce de grossos e finos. Era o administrador da tia Amalinha a participar que a santa senhora tivera um ataque e estava em artigos de morte.

O successo vinha importuno porque o António Pinheiro, de camaradagem com o seu fidus Achates, o inseparável Sequeira, tratava por aquelles dias de dar á luz o primeiro numero da Revista das Famílias, em que elle figurava de redactor principal, e o outro de proprietário.

A indecisão foi breve. Resolveu partir immediatamente. A Revista que esperasse. Primeiro estavam os seus deveres de sobrinho único.

Perdera cedo pães e avós. Pertencia a uma família extincta. A tia Amalinha, irmã da avó materna, era única representante da sua ascendência. A pobre senhora, em tão avançada idade -- por volta dos oitenta -- , não contava com outro parente próximo.

Costumara passar temporadas com a tia Amalinha na quinta Mas aquella atmosphera de rosários e ladainhas, sempre obrigada á convivência das criadas minhotas, não era adequada ao seu temperamento, talhado para exigências mundanas.

Agora ia, tinha que ir. Não podia deixar de assistir aos últimos momentos da pobre senhora.

De mais a mais, lá não tinha gasto nenhum. Bastava-lhe pedir mais uns tantos mil reis ao Sequeira, para não ir de todo desprevenido na viagem. Tinha que tomar primeira classe por causa dos conhecidos. Bem sabia que no estrangeiro se viajava em qualquer classe. Mas em Portugal, á gente que se presava, impunha-se a primeira classe. Até os revisores olhavam para as pessoas de outra maneira. Era -- vocencia para aqui, vocencia para ali. Reconhecia em tudo que nascera para a vida quintessenciada. Abominava cada dia mais a monotona secretaria. Se ao menos estivesse no ministério dos Estrangeiros, onde se não trabalhava quasi nada, e se passava a vida entre gente de luvas, escrupulosamente engravatada ! Mas no ministério da Justiça ! Um horror! gente que não lavava os dentes nem limpava as unhas !

Até lhe vinha bem aquella viajata que o livrava das odiosas maçadas da secretaria. Pena que a tia Amalinha se não tivesse disposto a morrer uma semana mais tarde ! Teria tido tempo de dar saida ao primeiro numero da Revista. Mas o capricho das cousas puxara para outro lado. Só tinha um expediente: conformar se e partir.

Foi o que fez, levando na algibeira alguns mil reis que augmentavam a sua divida ao Sequeira, e em todo o systema nervoso uma excitação inquietante como prurido de brotoeja. E' que n'aquella viagem acelerada vinha elle pensando quasi desde que tinha memoria. Era um acontecimento necessário, esperado com impaciência através dos annos, desde o seu tempo de estudante. Já n'aquella época, sempre que recebia um telegramma, cuidava que era do administrador a participar-lhe a morte ou a doença desesperada da tia Amalinha.

Mas a boa senhora obstinara se em ir vivendo, vivendo placidamente, entre as orações da manhã e o Rosário que entaramelava ás tardes, rodeada pelas criadas e alguns empregados das fazendas.

Quando o António Pinheiro agora chegou á Quinta dos Suspiros, encontrou assombrada a sciencia minhota d'aquelles contornos. Estava esta ali dignamente representada nas pessoas de três graves doutores que duas vezes por dia rodeavam o leito da enferma. Contra os três gravíssimos prognósticos, a tia Amalinha ousara melhorar consideravelmente. Recuperara o uso da fala e o pouco que sempre possuirá de faculdades intellectuaes. Na face circumspecta da sciencia notava-se muita estranheza e algum despeito.

O António estabeleceu-se no quarto da tia Amalinha como o mais zeloso dos enfermeiros. Dia e noute não lhe abandonava a cabeceira. E a anciã parecia muito sensivel áquelles cuidados. A's vezes estreitava-lhe a mão entre os dedos engelhados e trémulos, e chamava-lhe o seu Antoninho. Depois chorava e ria ao mesmo tempo, communicando aos nervos susceptíveis do António um intenso mal-estar.

Vieram novos ataques. Entre melhora e peiora passaram dois longos mezes, em que o bom sobrinho persistiu, com tenacidade admirável, no seu posto de infatigável enfermeiro. As criadas velhas elogiavam muito o menino, que bem se via ser o que ellas sempre tinham imaginado -- um coração de pomba. O director espiritual da boa senhora, frequentador assíduo da casa, é que não fazia o menor echo a estes gabos. E punha seus reparos.

O mal ia avançando. Por fim a tia Amalinha soffreu longas crises lethargicas, em que parecia que toda a idea de parentesco se lhe tinha varrido. Mas o António não fraquejava. Esperava tranquillo, com paciência, com fé.

O seu caso não era um d'estes casos melindrosos, bicudos, em que á viva força se pretende extorquir um testamento. Nada d'isto.

Com os seus velhos hábitos de inacção provinciana, a tia Amalinha era completamente incapaz de meditar e realisar um testamento. Mas isso, a elle, que podia importar-lhe ? A santa senhora não tinha mais herdeiro que o seu Antoninho, herdeiro necessário que saberia galardoar os antigos serviçaes, sem que fosse compellido por disposições testamentárias. Essa confiança decerto lhe estava socegando muito os últimos momentos, a ella.

O que o António esperava todos os dias era que a tia Amalinha, em algum momento de reviviscencia, lhe fizesse certas recommendações. Havia de querer pelo menos um cento de missas. E talvez lhe occorresse contemplar com um donativo especial o administrador.

Mas a tia Amalinha, quando melhorava e estava lúcida, d'aquella luz tibia que fora o seu modesto quinhão de potencia intellectual durante a vida, como que refugia do tremendo assumpto da morte. O que ella dizia era que ainda esperava pôr-se melhorzinha e ir a Lisboa ver a Chica, aquella sobrinha de quem tanto ouvira falar e que ainda não tinha o gosto de conhecer.

E elle vinha-lhe desembaraçadamente com a mentira que ideara para justificar a ausência da mulher: um adiantado estado de gravidez que tornava incommoda e até perigosa uma tão longa viagem de caminho de ferro. E, para explorar bem este filão sentimental, já tinha dito á tia que, se o que estava para vir fosse femea, se chamaria Amália, como a avósinha. A ausência da Chica no solar da tia Amalinha era intencional e calculada por parte do António. O caracter independente da mulher, absolutamente refractário a curvaturas de espinha, as suas ideas modernas de emancipação feminina, destoando por completo do meio archaico da Quinta dos Suspiros, podiam innocente ou conscientemente deitar tudo a perder. Longe estava bem.

O peior era que aquella mentira da gravidez, aparentemente tão simples, já lhe estava dando que fazer. Ao chegar, tinha dito que dentro de um mez, o mais tardar dois, seria pae. E as criadas velhas interessaram-se logo muito, sempre importunando-o com perguntas, querendo saber todos os dias se a senhora já dera á luz. E no oratório tinham dia e noute uma lamparina á Senhora dos Afflictos, rogando por que a companheira do menino tivesse uma hora feliz.

Isto pesava-lhe, impacientava-o. Elle não era um mentiroso inveterado, que folgasse com a mentira. Mentia com desembaraço notável quando lhe era preciso. Mas sustentar a mentira incommodava-o como cousa plebeia, despresivel. Agora trazer envolvidos no embuste Deus e os santos, isso desagradava-lhe profundamente. Era um pouco supersticioso; aquella graça ia-lhe parecendo já um tanto pesada.

Não tinha remédio. Havia de sustentar o seu papel de presumptivo papá até ao fim. E, para esquivar-se a uma importunação diária, communicou ás criadas que tinha havido engano de um mez.

Calmava o remordimento supersticioso refletindo para os seus botões que qualquer homem no mesmo caso faria cousa igual ou parecida. Elle necessitava absolutamente de estar só em campo para ter o jogo seguro.

Velando as noutes junto á respiração ofegante da pobre senhora, entre o resomnar orchestral das criadas, tinha visões deslumbradoras. Antegosava com exquisito deleite impressões que em breve seriam realidade. Encantava-o já a completa transformação que ia sotfrer a sua vida. Também a pobre Chica ia reviver, coitada !

Teriam carruagem e camarote em S. Carlos. Ou talvez antes frisa. Preferia as frisas, pela animação da plateia. Marcariam um dia para receber, á noute. A' tarde, á hora do chá, estava ainda na secretaria. Pelo seguro, não queria logo ao principio deixar os quarenta mil reis da negregada secretaria. O que faria era faltar mais alguma vez; isso sim. O chefe era amigo ; faria vista grossa, sobretudo desde que o soubesse um homem rico. Logo que tivesse tomado pulso á situação, veria o que podiam todos os annos reservar para viagens. Viajar era indispensável. Portugal era uma posilga. Também lhe sorria muito ter automóvel, crestes pequeninos, acco mnodados, urbanos, próprios para fazer mansamente visitas.

Mas não queria metter-se em grandes cavalgarias sem apurar ao certo a quanto montavam as rendas da tia Amalinha. Tudo o que sabia era que a bem-governada senhora tinha hectares e hectares de terreno, fertilissimos toados, alguns prédios de casas ruraes e urbanos, tudo o quê corria por conta de um administrador de face patibular.

Casa própria em Lisboa, isso sim ; isso havia de ser um dos seus primeiros cuidados. Podendo, ninguém devia estar nas garras de senhorios. Melhorou peor, sempre poderiam ter casa sua.

Outra cousa que não dispensaria era criado de mesa. E podia tel-o de casaca, passando-lhe as suas um pouco usadas. Assombrava-o como alguns companheiros de secretaria, dos que usavam annel de solitário no dedo, podiam aguentar uma criada chinclenta a abrir-lhes a porta. As suas andavam limpamente vestidas, e, ainda assim, detestava-as porque lhe pareciam plebeias.

Outra necessidade urgentissima era fornecer decentemente o seu guarda-roupa. Adoptaria vestir-se á ingleza. N'este ponto sempre lhe parecera que a Inglaterra andava muito por cima das outras nações.

Provavelmente nem chegaria a collaborar na Revista das Famílias. O Sequeira, se tinha essa mania, que se arranjasse como quizesse, que procurasse outro redactor. Podia convir-lhe o João Carneiro, por exemplo, que levava um ror de meses desempregado em busca de pão para sete bocas familiares. Esse, accommodar-se-ia com qualquer cousa, sem grandes exigências. E talvez até se fizesse por fim um bom jornalista, apesar de nunca ter estudado uma palavra. D'essa massa era que elles se faziam. A necessidade material, agravada por uma requa de filhos, era necessariamente o melhor dos acicates. Agora o seu caso ia ser muito differente. Rico e sem filhos, para que havia de estar com quebradeiras de cabeça ? E afinal para quê ? Para dar saida a mais um papelucho como tantos. Quem no fim de contas tinha razão era a Chica. Não lhe faltaria em que matar o tempo se quizesse distrahir-se com qualquer trabalhinho.

Todos os seus planos de grandeza eram communicados em longas cartas á Chica. Ella deixava sem resposta essa parte das cartas; e ; sem a menor allusão ao assumpto financeiro, manifestava sempre o seu desejo de que a tia Amalinha ou melhorasse definitivamente ou acabasse depressa o seu martvrio.

N'uma carta também ella lhe dizia sentir muito que elle tivesse encarregado o Sequeira de cobrar os ordenados, porque ella o poderia fazer perfeitamente sem incommodar ninguém. Isto a elle parecera-lhe uma ratice. Andar agora uma rapariga de vinte e cinco annos, bonita e elegante, mettida pelos ministérios para cobrar uns reles quarenta mil réis! Mandou dizer á Chica, terminantemente, que não fizesse tal cousa. O Sequeira era um bom ■amigo e muito amável. Não fazia o menor sacrifício em prestar-lhes aquelle pequeno serviço. Já lhe deviam tantos ! E até podia pedir-lhe emprestado algum dinheiro, se me faltasse. Não valia a pena estar agora com economias sujas. Até lhe parecia que ella devia ir tratando do lucto. Que não esquecesse como as modistas enganavam e faziam perder tempo e paciência. Se não fosse pela prisão do lucto talvez ella até pudesse ir ter com elle ao Minho logo que a tia fechasse os olhos. Havia de distrahil-a conhecer tudo aquillo. E elle ia ter que demorar-se bastante para tomar posse e organisar as cousas a seu geito. O Sequeira poderia acompanhal-a em parte do caminho, durante a noute por exemplo, que era o mais aborrecido. Elle iria esperal-a á estação que combinassem...

Mas o António, quando acabara de escrever isto, dera de repente um formidável murro na mesa. Quasi instantaneamente inutilisava a segunda folha de papel que levava escripta, rasgando-a, desfazendo-a com raiva.

Occorrera-lhe o estado interessante da mulher. Era forçoso renunciar á viagem por causa das criadas velhas, cuja lamparina piedosa continuava dia e noúte alumiando a Senhora dos Afflictos. Maldita idea tivera!

Poderia arranjar tudo dizendo em casa que a mulher tivera um mau successo de que já estava convalescente, e em que não quizera falar-lhe antes para o não desgostar. Mas que cara poria a Chica quando as velhotas, á chegada, cheias de tregeitos compungidos, lhe dessem os sentimentos por aquelle fracasso maternal de que ella não tinha a menor suspeita ? Nem pensar em tal !

Contar á Chica o que dera origem áquella farça, que tanto o estava desgostando, não podia. Tinha a peito conservar a estima d'aquella mulherzinha a quem por fim, a seu modo, queria deveras.

E, como todas estas considerações e o ter inutilisado uma folha toda escripta o puzeram de muito mau humor, circumstancia em que estava acostumado a voltar-se sempre contra a mulher, escreveu finalmente uma carta muito nervosa, estranhando, com accentuada amargura, que ella nunca protestasse contra a prolongada ausência, nem lhe dissesse nunca que estava morta por vel-o em Lisboa. Seria possível que não tivesse saudades? Teria diminuído o seu amor ? ...

Um dia. repentinamente, houve um grande sobresalto na velha casa minhota. A tia Amalinha, que até então nunca falara em morte, sentiu de improviso uma angustia enorme e julgou que ia acabar. Com voz entaramelada pediu o confessor, com quem se encerrou durante meia hora para a conveniente limpeza da consciência.

Depois, quiz todos os criados á roda do leito para despedir-se, em quanto apertava na sua mão engelhada a mão do sobrinho chamandoIhe com voz extincta -- o seu Antoninho. Neste momento solemne António Pinheiro estava-lhe de joelhos á cabeceira, concentrado, como immerso em pensamentos profundos. Estaria acaso pensando de que marca lhe conviria mais o automóvel se chegasse a compral-o.

Passada uma hora, a tia Amalinha, com assombro geral, segundo o dizer pinturesco do confessor, arrebitou. Pediu um caldinho com uns baguinhos de arroz e um migalho de peito de gallinha. A cozinheira quando tal ouviu, saiu correndo, a bater palmas de alegria. A sua rica senhora ! -- Ella bem sabia que a sua senhora sempre dizia que comia um migalho de tudo, ainda quando se tratava de saborear duas perdizes ou uma choruda fatia de presunto. Sempre a tia Amalinha fora senhora de muito alimento e estômago á prova de bomba. Mas sempre vivera convencida de que padecia um fastio mortal, e de que em toda a sua vida não passara de provar as comidas, comer migalhos de tudo.

Os creados voltaram, tranquillisados, ás suas respectivas oceupações. E a tia Amalinha, acolchetando a dentadura postiça, fez honras ao peito de uma das mais perfeitas gallinhas da sua capoeira, regando o acepipe com uma colher de Madeira velho.

Decorreu uma quinzena, em que aquella enternecedora scena da despedida se repetiu varias vezes. Por fim, os creados, chamados á pressa, entravam já incrédulos no quarto, sorrindo á socapa com uma pontinha de ironia.

Quando a pobre senhora deveras acabou, entregando definitivamente a alma a Deus, ninguém deu credito ao acontecimento. A criadagem preparava-se para sair alegre do quarto quando a tia Amalinha, sentindo no peito uma oppressão maior, exhalou o ultimo alento, sem agonia, sem estertor, como um passarinho.

A surpreza engrandeceu o golpe. Quando se convenceram de que a boa senhora não respirava, espalhou-se por toda a casa um alarido insurdecedor, desconcerto de soluços, de gemidos, de exclamações incoherentes. -- Tão boasinha p'rá gente ! E temente a Deus ! Era uma santa ! Está no ceo vestidinha e calçada ! Deus lhe perdoe e a livre das penas do Purgatório! E limpeza! isso não ha segunda! Mais amiguinha dos pobres ! Uma dona de casa de mão cheia. E p'ra dar conselhos á gente!...

Era uma verdadeira ladainha, resada em coro entre uma symphonia de choro.

O António, envergonhado da própria placidez em meio do mais estrondoso berreiro a que tinha assistido em dias da sua vida, adoptou o decoroso expediente de passar varias vezes o lenço nos olhos enxutos.

E a verdade, apesar da ausência das lagrimas, era que elle se sentia profundamente commovido. Desde aquelle dia tudo ia mudar na sua existência.

A tia Amalinha rendera a alma a Deus ás 9 horas da manhã. Eram 3 da tarde quando o confessor da defunta, padre Segurado, apresentou a António Pinheiro, como membro da familia, o testamento da tia Amalinha feito seis annos antes, na presença de tabellião, com todas as formalidades da lei.

Legava o total da sua casa a diversas congregações religiosas, com encargo de mandarem dizer mil missas por sua alma. Nomeava testamenteiro o seu administrador Manuel Felizardo, e deixava-lhe como lembrança de amisade uma inscripção de quinhentos mil reis.

Também como lembrança deixava outra inscripção do mesmo valor ao seu muito amado sobrinho António Pinheiro; e vinte mil reis, dados por uma só vez, a cada uma das suas criadas e ao caseiro. No dia do seu enterro queria que se abonasse o jornal a todos os trabalhadores das suas terras, não se lhes exigindo n'esse dia nenhum trabalho.

O António ficou varado. Trocou um olhar furibundo com o olhar humilde do sacerdote. Teria talvez desejado fazer ali nas bochechas do padre Segurado um discurso fulminante. Era porém tal aquella desorientação que a palavra lhe faltou por completo.

Emfim, dando uma tremenda patada, cousa algo parecida ás do género cavallar, atirou ao padre boquiaberto um vocábulo terrivel : «Canalhas!» Feito isto, saiu do quarto bufando, sem a menor consideração pelo cadáver que ali estava perto, sereno, de mãos cruzadas, com a physionomia banhada em suave compostura. Passando ao aposento immediato atirou a porta com estrondo, berrando: «Fortes malandros !»

As criadas velhas que velavam o corpo da senhora persignaram-se assustadas, olhando de revez, com ódio, o confessor. Os vinte mil reis estremes deviam ter abalado um tanto a devoção confessional d'aquellus boas almas.

Pouco depois o António expedia á mulher o seguinte telegramma : «Tia enterra-se hoje. Deixa tudo aos padres. Parto amanhã. Não trates nada de lucto.»

IV

Esmeraldo Sequeira era homem passante dos cincoenta annos, apparentando pouco mais de quarenta. Deviam contribuir para este resultado Hsongeiro a boa vida que levava e a chimica que lhe reluzia no cabello azevichado.

Não parecia dar-lhe demasiado trabalho a casa de commissões que dirigia. Era homem que nunca tinha pressa. Vivia no Hotel Central, regaladamente, disfructando a maior independência do celibatário abonado de meios.

Tinha fauleuil em São Carlos e passava o mez de outubro em Cascaes, tão cortejado pelas mamãs que tinham filhas casadeiras, como pelas próprias filhas, candidatas ao único destino que lhes apontavam como dignamente possível -- o matrimonio. Ali, em Cascaes precisamente, conhecera o António Pinheiro no anno em que elle fazia a corte á Francisca de Mello.

Usava todo o anno flor encarnada na botoeira e não tinha partido politico. Trazia sempre varias notas e muita prata na carteira. A finura de maneiras a que tinha não vulgares pretenções nunca deixava de ser neste homem cousa postiça, a cair por fora, como aliás succede a muito boa gente. Era escrupuloso na camisa alvissima. Reparando de perto, podiam notar-se-lhe as unhas muito menos cuidadas que a camisa. Também não havia n'isto cousa extraordinária. Fumava charutos carissimos de que atirava fora a ultima metade com ar desdenhoso, a desafiar o melancholico fumador pobretão que chupava o mesquinho cigarro até queimar os dedos.

Tal era o grande amigo intimo de António Pinheiro desde o verão anterior ao casamento. Assistira-lhe á ceremonia nupcial e offerecera como prenda aos noivos um lindo estojo, digno de figurar nas listas das folhas noticiosas, contendo doze talheres de vermeil -- assim vernaculamente dizia o Diário Illustrado -- com cabos de madrepérola finissima.

No dia seguinte áquelle em que o António Pinheiro partiu para o Minho, o Sequeira foi ao Salitre comprimentar a Chica e pôr-se incondicionalmente á sua disposição para tudo em que pudesse servil-a.

Tinham mudado da casa de São Francisco desde a morte do mallogrado diplomata e a consequente suspensão das mezadas. Com só uma criada, também convinha casa reduzida onde a limpeza se facilitasse.

A casinha da calçada do Salitre era alegre, com muito sol, e estava graciosamente adornada pela Chica. Das variadissimas prendas da corbeille só estavam á vista as pouquíssimas que revelavam algum toque de bom gosto, algum fiosinho de arte.

A criada, acostumada á visita familiar do Sequeira, que ia muitas vezes tomar café com o António, mandou-o entrar, sem annuncio prévio, para o gabinete das sessões intimas, onde a Chica n'aquelle momento escrevia a primeira carta ao marido depois de casados. Nunca se tinham separado. Tinha os olhos vermelhos e o lenço na mão.

Via-se que estivera chorando. E também podia notar-se, muito expressivo, o gesto de contrariedade irreprimível á chegada da visita.

O Sequeira, como se não tivesse dado fé de semelhantes minuciosidades, entrou com o desembaraço costumado, refestelando-se com ar satisfeito na cadeira mais commoda, e pediu para conservar o charuto acceso... se não incommodava.

-- Que não... Que não incommodava nada. -- E, contradizendo o protesto a Chica, talvez intencionalmente, foi abrir uma nesga da vidraça. Elle pedia-lhe que continuasse, que não interrompesse a escripta. -- Já sabia que elle não era homem que tivesse pressa.

Ella, porém, deixou falar, e metteu na pasta a carta começada, dispondo-se a receber ceremoniosamente aquella visita que já adivinhara mas que não esperava tão cedo.

Nunca pudera sympathisar com aquelle homem. Limitara-se sempre a ser com elle nimiamente correcta.

Mais de uma vez lhe estranhara o marido aquella frieza. Achava-a caprichosa nos seus affectos. -- Era para onde lhe dava. O Sequeira era o melhor dos homens ; e prestavel e serviçal como poucos. Provara-lh'o já em mais de uma occasião difficil.

Chegara a convencer-se de que o António devia ter razão, e a propôr-se vencer aquella injustificada antipathia ao Sequeira. Até áquelle dia porém a aversão mantivera-se inabalável.

Elle explicou ao que ia: pôr o seu limitado préstimo aos pés da sua amiga. Exigia-lhe que o mandasse chamar immediatamente, fosse a que hora fosse, se occorresse qualquer novidade.

O António encarregara-o de receber o ordenado e entregar-lh'o. Alas ella não necessitava de estar dependente dos tristes quarenta mil réis do Estado. Elle podia não só adiantar-lhe o ordenado mas quanto dinheiro quizesse. Doía-lhe muito ver um espirito elevado como o d'ella preso nas garras da mais feroz economia. Quem podia consentir n'um despropósito semelhante? Era uma iniquidade; era um crime. A economia, levada a certos extremos, rebaixava, deprimia as pessoas. Um ser como ella viera ao mundo para pairar sobre taes misérias.

-- Ninguém melhor do que elle conhecia o António. Fazia-lhe justiça inteira. Era no fundo um excellente rapaz. Mas também requintadamente egoista, como todos que topam no mundo com almas excessivamente consagradas, de abnegação exorbitante.

Abstendo-se delicadamente de intervir, elle tinha assistido a varias ouestões entre os dois sobre economia domestica. E -- porque não havia agora de confessal-o francamente á Chica ? -- saíra d'ali mais de uma vez. incommodado, profundamente magoado, indignado até. Milagres não se podiam fazer. A vida em Lisboa era medonhamente cara.

-- De mais a mais, o António, comsigo, não evitava certos refinamentos escusados. Não tomava um dia ou outro uma corrida de carruagem ? E para quê? Não tinha Americanos e Ripperts para toda a parte?

Ella escutava admirada. Não presumia que o marido tivesse o costume de andar de carruagem.

N'este ponto do monologo o Sequeira parou, chupando nervosamente três fumaças successivas.

A Chica, pensativa, não dizia palavra. No olhar relampejava-lhe como uma indecisão molesta. Seria acaso generoso impulso de defender o marido ausente? Mas o Sequeira dizia cousas tão verdadeiras ! Ia-lhe tanto ao fundo da consciência revoltada ! Sondava com tanta penetração a fonte das suas mais intensas agonias ! E ella nunca soubera mentir. Pela primeira vez escutava com algum interesse aquelle homem que era talvez seu amigo sincero.

O Sequeira trocou com ella um olhar profundo que desentranhava com paternal solicitude as suas dores mais intimas, e proseguiu o monologo interrompido.

-- Elle via ali um caso psycologico digno de estudar-se a sangue frio. Conhecera já vários exemplos análogos: homens vulgares, sem nenhum attributo excepcional, casados com mulheres superiores. O elfeito era sempre igual: certa espécie de despeito, cousa muito aparentada com a inveja; um como desejo de abater, para levantar-se ; um como instincto de oppressão vingativa.

-- O que elle mais sentia era não merecer bastante confiança á Chica. Conhecia-o na sua attitude reservada. Quizera inspirar-lhe a confiança que se tem n'um amigo velho -- E, ao dizer a ultima palavra, o Sequeira retorcia com certa graça maliciosa o bigode azevichado.

-- Queria que ella se resolvesse a dizer-lhe ingenuamente todas as suas penas. Dar-lhe-ia conselhos, alentos, que melhorariam as condições da sua vida. Todo o coração necessita de outro coração para expandir-se, para palpitar em consonância de idéas e affectos...

Como a Chica n'esta altura levantasse para o Sequeira um olhar altivo cheio de surpreza, elle, sorrindo, accrescentou tranquilamente : «Eu quasi podia ser seu pae, menina. Não estranhe que lhe fale assim. Vejo-a tão criança... e tão infeliz !»

Houve um silencio. Depois o Sequeira, piparotando o charuto para dentro de um pratinho do Japão que servia de cinzeiro, proseguiu, com o mesmo ar tranquillo: «Em geral os maridos preoccupam-se pouco de ser os confidentes e conselheiros das mulheres. O que quasi todos se crêem é no direito de ser os oppressores, os tyrannos. Tomam a casa como mero centro das materialidades da vida. E isto é um erro formidável. O geral das mulheres submettem-se a essa tyrannia, desistindo, por fraqueza ou por apalhia, das mais naturaes aspirações de felicidade. Mas a Chica não pode viver assim. Tem que libertar-se de uma tutela absurda que a opprime, que a tortura, que a não deixa viver...

Talvez porque a Chica fizesse aqui um pronunciado gesto de impaciência, o Sequeira pozse de pé na intenção aparente de concluir a visita. Durante ella a Chica não falara. Porquê? Seria que a commoção lhe tivesse embargada a voz ? Não era estranho que o caso se desse. Toda a mulher tem um quê de criança. E não ha nada para excitar lagrimas infantis como a compaixão por uma dor que se engrandeceu com o apoio alheio. O momento era aliás de commoção quando o Sequeira entrara. O manancial das lagrimas estivera aberto antes. A maior lucta seria talvez agora o represal-as. N'este conflicto a voz costuma desaparecer.

Ao passo que abotoava a luva, da mão esquerda, o Sequeira disse-lhe com inflexão caridosa: «Permitta que a venha ver alguma vez, e saber noticias d'aquelle ingrato que decerto me não escreve uma letra.»

Tocando de novo a questão do dinheiro, repetiu calorosamente os anteriores offerecimentos, com um escrupuloso cuidado de tirar toda a importância ao facto.

-- Em seu juizo o dinheiro não passava de um detalhe baixo, secundário, na vida; uma vantagem casual. Era uma materialidade reles que não valia a preoccupação de cabeças formosas, ideaes. A vida para a Chica devia ser tocar piano, lêr romances e revistas, passear, ir á sociedade, numa palavra, gosar a sua esplendida mocidade, fora do alcance de indigestos algarismos. Não lhe faltaria tempo para ser velha e feia, para ter rugas na testa, para se materialisar. Agora, a vida do espirito, a vida do coração. Quizera vel-a gastar á larga, dispor amplamente de dinheiro, para satisfazer todos os seus desejos, até todos os seus caprichos...

Aqui, quasi supplicante, buscou convencel-a que lhe permittia ir-lhe fazer um pequeno adiantamento. Até era um beneficio para elle, aliviar- se de umas poucas de notas que casualmente tinha ali e lhe rompiam a carteira.

Mas ella oppoz se terminantemente, assegurando ao Sequeira que tinha dinheiro de sobra, que não lhe faltava nada. Em caso contrario não duvidaria recorrer á sua amabilidade. A ausência do marido diminuia muito as despezas.

Aqui o Sequeira teve uma expansão melodramática, passando a mão nervosamente pelo cabello.

«Valha-me Deus! Valha-me Deus!... A Chica até é capaz de passar necessidades por causa da maldita economia... Que horror ! Que atrocidade !»

Ella, ruborisada, aflançou-lhe que não; que não havia tal cousa. Sempre elle tinha idêas!

Sequeira então lembrou que, tendo em artigos de morte uma parenta próxima do marido, havia de necessitar occupar-se de lucto, tratar com modistas. Mas a Chica pediu-lhe, magoada, que lhe não falasse em tal cousa. A pobre senhora ainda vivia e podia ser que áquella hora estivesse melhorando.

Elle encolheu os hombros um pouco irónico. n'uma fria sentença de morte em que não havia apellação. E despediu-se com um effusivo e longo aperto de mão -- talvez demasiado longa -- promettendo voltar breve.

A Chica foi direita á cozinha recomendar á criada que não tornasse a introduzir-lhe qualquer visita no gabinete sem primeiro annunciar. Mandasse sempre entrar para a sala e fosse dar-lhe aviso.

A rapariga, em sua justa defeza, allegava que o sr. Sequeira tinha aquella balda de metter-se pela casa dentro sem esperar uma nem duas. Para a outra vez havia de ensinal-o. Era logo: «Voscellencia tenha a bondade de esperar aqui na sala qu'a senhora não está vesible» -- E prontava-se-lhe no meio do corredor a tomar-lhe o passo. Sempre queria ver! -- E ficava preoccupada, talvez a scismar na maneira de attenuar a dureza d'aquella imposição, attendendo ás liberalissimas gorgetas que o Sequeira dava em dias assignalados. E sabia Deus as que ainda poderia vir a dar-lhe! Notava-lhe sempre um não sei quê na vista quando elle se punha embasbacado para a senhora como quem mirava um painel.

N'aquella tarde um moço do melhor estabelecimento de flores da Baixa levou ao Salitre um bello, fresquíssimo ramo de flores. Era também portador de um bilhete de visita. Por baixo do nome Esmeraldo Sequeira, estava escripto a lápis -- Para suavisar-lhe a solidão.

V

Apesar do concentrado mau humor com que o António voltava a Lisboa depois de tantas commoções excitantes, acabrunhadoras, não pôde ser insensível a uma extranha circumstancia, a uma grande surpreza. Aparecia-lhe a Chica como remoçada, com aquelle ar de satisfação que sempre tivera em casa no tempo do inolvidável diplomata.

Com jubilo, tornava a encontrar, cuidado e graça na mesa, esmero nas flores, uma cor de bem-estar e de civilisado conforto em tudo.

O assumpto dinheiro parecia propositalmente banido. A Chica nem por acaso alludia a assumptos financeiros. Falava agora muito de uma Revista, mas cousa séria, tendenciosa, em que ambos collaborassem; talvez uma publicação para crianças, talvez uma tentativa de construcção feminista. Queria porém que prescindissem do dinheiro do Sequeira, que dedicassem á empreza os quinhentos mil réis da tia Amalinha.

E sempre havia um coitada!, ou qualquer outra expressão de carinho, dedicada á memoria da boa senhora que não conhecera.

O António entendia que não deviam estar com taes escrúpulos com o dinheiro do Sequeira, um intimo, quasi um irmão. Mas não sentia já o antigo desejo de contrariar a mulher, agora que a via activa e alegre, sem aquella insupportavel preoceupação incessante da escassez de recursos materiaes.

Ao chegar, elle quizera logo saber como se portara o Sequeira. -- Que bem; que muito amável. Fizera-lhe os mais rasgados olferecimentos, inclusivamente de dinheiro. Ella porem não tivera occasião de utilisal-os...

No dia seguinte ao da chegada, o António apresentou-se na secretaria. Tinha estado ausente três mezes, fiado em certa condescendência do chefe e na herança da tia Amalinha. Um herdeiro, ainda que só presumptivo, de algumas centenas de contos pôde faltar á secretaria. Mas um herdeiro gorado passa a condições muito ditíerentes. O António já não podia sensatamente renunciar á sua cathegoria de funccionario publico.

De mais a mais não tinha que esperar que lhe aviassem o lucto. Estava resolvido: não poria lucto pela tia Amalinha, uma beata que fora metter nas algibeiras dos padres um capital que era muito seu. Tivesse elle adivinhado, e não teria aguentado aquella estopada de três mezes, entre ladainhas, rosários e outras quejandas embustices.

N'esta abstenção de lucto não encontrara opposição na Chica. Ella não dava verdadeira importância a este uso convencional do fato preto. Parecia-lhe antes uma absurda imposição rotineira com marcada tendência a acabar, como todos a subversões da liberdade.

Em tudo notava o António a profunda transformação que se operara na Chica durante a sua ausência. Sob aquella apparencia de alegria, de despreoceupação, surprehendia até traços novos que o inquietavam : frieza que mal se escondia, uma decisão tenaz que o sorriso perenne não dissimulava bastante. Sempre tivera a Chica maneiras graves, distinctas; mas o que agora ressumava, por baixo de uma affabilidade talvez excessiva, era certa rigidez, certa intensão um tanto hirta que o desconcertava.

Sobre a herança da tia Amalinha não tinham chegado a atar conversação seguida. Aos commentarios vulgares, muito materialistas, do António, a Chica respondia evasivamente evitando o assumpto, como espinhoso ou falho de interesse.

Evidentemente tinha havido uma mudança. A condescendência passiva, a humildade, tinham ficado além. Agora, presentia-se em todo o ambiente uma força occulta, uma influencia extranha. A Chica estava em tudo, agradavelmente, como nos primeiros tempos de casada. Mas o pensamento divagava por outras partes: o pensamento não estava ali.

Que influencia podia ser essa? Uma tal consideração chegou a sobresaltar intensamente o António.

Seria atraiçoado ? Quando isto lhe occorreu pela primeira vez sentiu logo um vivo remorso. Duvidar da Chica era duvidar da própria virtude; negar a existência de todo o bem. Não, a vida não podia ser um inferno em que só predominasse a traição.

As cousas porém não melhoravam de aspecto. A cada dia que passava accentuavam-se as impressões pessimistas. Resolveu consultar o Sequeira. Não era elle o seu melhor amigo? Tinha-o quasi como um irmão. Depois, o Sequeira -- não sabia bem porquê -- exercia um grande ascendente sobre elle. Bem podia ser que, como uma só palavra do amigo, se restabelecesse de súbito a calma, a tranquillidade da sua vida.

E foi procurar o Sequeira, como se vae a casa do dentista para arrancar um queixai dorido, quasi certo de que, ao voltar, toda a dor teria desapparecido.

Mas o Sequeira, depois de o ouvir cabisbaixo, ficou-se a retorcer o bigode pintado e não lhe pespegou, com ademanes dramáticos, a descompostura que elle esperava e desejava. Tinha calculado que o menos que o outro podia fazer era chamar-lhe selvagem, animal, por atrever-se a pôr conceitos de desconfiança n'uma mulher tal como a Chica. O Sequeira porem prolongou cruelmente aquella atitude reservada; e, quando emfim se resolveu a olhar, fel-o com tal ar de commiseração que o António sentiu impulsos de o esbofetear.

Emfim, o amigo falou. E as suas palavras frias, ponderadas, eram settas que se cravavam até ao mais-fundo no coração do António. Mal podia crer o que ouvia. Transtornado, deixou-se cair no sofá com a cabeça apertada nas mãos.

O Sequeira também vinha desde muito sentindo apprehensões; também tinha suspeitas. A sua intensão fora continuar a frequentar a casa do amigo, durante a sua ausência, como um familiar, como um irmão. Não pudera logral-o, apesar da sua boa vontade e propósito.

Desde o primeiro momento fora recebido com gélida frieza, a breve trecho transformada em franca hostilidade. N'essas curtas visitas a Chica quasi não descerrava os lábios. Recordava com desprazer o constrangimento d'aquelles monólogos opprimentes.

Depois a Chica passou a negar-se-lhe com qualquer pretexto; uma dor de cabeça, arranjos caseiros... Algumas vezes também dizia-lhe a criada que a senhora tinha saido.

Começou a estar inquieto sem poder explicar-se porquê. Talvez simples palpite. Elle acreditava em palpites. Por fim viera uma circumstancia fortuita confirmar-lhe a vaga suspeita.

Sabia que estava causando ao António uma dor intensa. Mas cumpria um dever austero tratando-se de um amigo. Assim quizera que os amigos se portassem com elle em igualdade de circumstancias. Ia expôr-lhe francamente as cousas, como as observara, incrédulo a principio, assombrado depois.

O Rocha, um seu amigo dos tempos de estudante, tivera uma pneumonia que o ia rapando. Fora vel-o todos os dias durante a semana de perigo.

Morava na rua dos Navegantes. Uma manhã, inesperadamente, viu a Chica entrar para uma casa de bom aspecto, cinco portas adiante da do Rocha, do outro lado. Dias depois, viu-a sair da mesma casa ás 2 da tarde. N'essa ocasião viram-se e falaram. Ella ficara extraordinariamente perturbada com o encontro. Explicou-lhe que vinha de visitar uma amiga doente.

Aqui o Sequeira tomou fôlego, accendeu um charuto e continuou: «Sempre a espionagem me pareceu cousa detestável. Mas tratava-se de um negocio sério em que eu via compromettida a tua honra. Julguei do meu dever espiar, averiguar. A situação da casa do Rocha, quasi fronteira á outra, facilitava-me as operações. Pude então verificar...»

Um movimento brusco do António, sacudindo violentamente a cabeça, cortara a palavra ao Sequeira.

-- «Por Deus, homem, continua» -- e o olhar desvairado do António tinha lampejos de loucura. -- «Não vês que me estás torturando ?»

O Sequeira tirou uma forte chupada ao charuto e disse friamente: «Se te propões entrar pelo melodramático, calo-me. Detesto os Othelos, como ridiculos, como anachronicos. A verdade, ainda que dura, tem de saber-se, para que o publico, a galeria inepta, se não ria de nós. Mais nada. Tanto direito tem as mulheres a ter amantes como nós. Querer increpar de traidora a mulher que se cançou de ti é simplesmente absurdo. O que o decoro reclama n'esses casos é a separação. Em quanto as sociedades não chegarem ao divorcio com todas as naturaes consequências não haverá moralidade. O homem quer para si toda a liberdade, e a mulher para sua escrava. E' o ultimo dos absurdos. Não tens filhos. Ha casos muito peiores que o teu. Crês que te faltarão mulheres?...»

-- «Mas, afinal, o que é que tu averiguaste?» -- bradou o António, com os braços no ar, tão melodramático como se não tivesse ouvido uma palavra da exhortação modernista do Sequeira. Acaba, por Deus.*

-- Já lá vamos. . . O que eu averiguei foi simples. Ainda que devo dizer-te que me surprehendeu, porque tivera a ingenuidade de considerar a tua mulher differente de quasi todas as outras. Pude verificar sem a menor difficuldade que a Chica ia com frequência áquella casa da rua dos Navegantes, demorando-se lá horas successivas, saindo sempre com ar esquivo, receioso, usando um veu espesso que a tornava quasi desconhecida. O Rocha é um solteirão muito original, um tanto ascético. Tem uma cosinheira de sessenta annos e uma governanta de setenta. Esta é a família. Lá ninguém sabia quem morava umas portas mais adiante. Não quiz insistir nas perguntas para não levantar suspeitas. Estas minhas pesquizas datam de poucos dias. Ainda não pude avançar mais. É um edifício de quatro andares, de boa apparencia. Não sei mais nada. Que a tua mulher tem um amante, parece-me claro como agua. Que podes contar comigo absolutamente, para tudo, parece-me inútil dizer-t'o. Agora tenho que advertir-te que me penalizaria muito ver-te mettido estupidamente n'essas trapalhadas de duellos, assassinatos, suicidios e tuti quanti, a que arrastou a humanidade, certo embusteiro, certo farçante, de nefanda e ridicula memoria, chamado Alexandre Dumas. Fere sempre o amor próprio do marido que a mulher lhe prefira outro homem. Mas ha muitos remédios enérgicos e promptos para as fendas do amor próprio. Mais estúpido e absurdo do que matar só ha uma cousa : deixar-se matar. Com que direito ? O ponto de honra ? Tudo isso tende sensatamente a acabar. Não ha nada moral senão a liberdade, o livre arbitrio. Dentro de uns annos, não muitos, havemos de rir-nos dos tribunaes de honra como hoje nos rimos da cabelleira e rabicho dos bisavós. Verás...

A conferencia dos dois amigos prolongou-se até tarde. O António não foi jantar a casa nem se preoccupou de mandar avisar a mulher de que não ia.

VI

Passava muito da hora do jantar, e o António não vinha. Presa de supersticiosa inquietação, a Chica, sem deparar com outro partido, mandou a criada, correndo, a casa do Sequeira perguntar se tinha acontecido alguma cousa.

Veiu a resposta n'um lacónico bilhete do António. Dizia que o Sequeira tivera uma syncope que o assustara, e por isso ficara a acompanhal-o. Parecia a final que só se tratava de uma perturbação de estômago, cousa de pouco cuidado. Acrescentava que de manhã, ao sair de casa, encontrara um empregado do telegrapho que lhe entregara um telegramma urgente do administrador da tia Amalinha, reclamando a sua presença na Quinta. Tinha que partir no comboio da noute para o Minho, e pedia á Chica que lhe tivesse preparada a mala. Pouca roupa porque não estaria ausente mais que meia dúzia de dias. A' hora de sair passaria por casa, de carruagem, para levar a mala.

Tudo aquillo pareceu um pouco estranho á Chica. Como era que o marido se não lembrara de mandar-lhe antes recado, sabendo que ella o estaria esperando para jantar?

Preoccupada, não se sentou á mesa. Tomou de pé uma chávena de caldo que a criada insistiu em trazer-lhe.

E poz-se melancholicamente a arrumar a mala.

Melancholicamente, porquê? Dor da nova separação? Ao contrario; a melancholia vinha agora de fonte mui diversa. Recordava os tempos não longinquos em que uma separação, ainda que só de algumas horas, lhe custava um aperto do coração. E hoje? O que estava sentindo, desde que lera no bilhete do António a inesperada nova, era como uma sensação de allivio, de desoppressão, de resgate.

A ausência d'elle era o libertar-se da odiosa mentira, da pesada responsabilidade da culpa, o poder levantar o olhar sem receio de trair-se, livre do torturante grilhão do mysterio.

A sua vida ao lado do António era agora um cruciante martyrio. Ella, que sempre odiara a mentira, obrigada a inventar cada dia uma nova artimanha, um expediente novo, para reter, para conservar a fonte da única felicidade que lhe seria já possivel.

A presença do marido era-lhe agora uma tacita censura, um espinho doloroso, um torturante remorso.

Havia de arrancar-se áquella situação indecorosa. Mas quando ? Quando cobraria animo para contar-lhe tudo, para revelar-lhe o pesado segredo da sua vida, preparada para todas as eventualidades por duras que fossem, disposta a não transigir, a impôr-se, a repellir humilhações, a não deixar nunca mais anullar a sua vontade pelas arbitrarias imposições de outra vontade ?...

A' ultima hora, o António entrou de afogadilho em casa, deu um beijo distrahido na mulher, pegou na maleta, e deitou a correr escada abaixo com um lacónico Adeus !

Ella, no patamar, pediu-lhe que telegraphasse á chegada. Elle não respondeu nem voltou a cabeça a dizer-lhe outra vez adeus, como costumava.

Que teria? -- pensava a Chica quando entrou em casa, passando levemente o lenço nos olhos.

Estaria outra vez absorto n'aquella deprimente idéa do dinheiro da tia AmalinhaT Era possível. Que podia querer-lhe o administrador, quando tudo estava concluído? Teria apparecido algum testamento mais recente ? A mera supposição d'esse facto era bastante para transtornar completamente o António. Conhecia-lhe o fraco.

Por tudo isto esperou com redobrada impaciência noticias do Minho. Não veiu telegramma nem carta.

Aprehensiva, occorreu-lhe mandar saber da saúde do Sequeira. Achava estranho que elle agora não desse signal de si na ausência do marido. As criadas velhas agradeceram muito o cuidado da senhora e mandaram dizer que o senhor não estivera doente, e continuava de perfeita saúde.

Não encontrava explicação plausivel a tantas anomalias.

Ao terceiro dia, a Chica vinha de fora, pouco depois das duas horas, quando á porta de casa ficou varada de surpreza.

Como sempre perguntou á criada se o correio tinha trazido alguma cousa. Atónita, ouviu esta resposta: «Veiu mas foi elle, o senhor... Pr'os modos está como uma bicha... Não abriu a boca p'ra dizer pio...»

A Chica correu ao gabinete, certa de que ia defrontar-se com uma nova desillusão sobre a desgraçada herança da tia Amalinha.

O António estava ali, de pé contra a mesa, pallido, hirto, olhos encovados, o cabello revolto.

-- «Que tens ?» -- exclamou a alvoroçada rapariga, atirando para o sofá o chapéu e as luvas.

Elle olhou-a rancorosamente; e, com gesto furibundo e voz exaltada: «Que tenho! Ainda m'o pergunta! Que tenho!... Despedaça a minha felicidade, o socego da minha vida inteira, e ainda tem a desfaçatez de perguntar-me o que tenho!»

A Chica olhou espavorida em torno, como á busca de um dado que fosse explicação a tão estranha scena. Nada descobriu. Deus! Estaria elle louco? Para que martyrios estava ella ainda guardada ?...

O touro pára um momento antes de arremetter com redobrada fúria. O António também parara ; e, emfim, na ultima corda do tom melodramático: «O cinismo d'esta mulher! o impudor com que entra na sua própria casa depois de ter passado horas nos braços do amante! O aspecto de dignidade de que sabe revestir-se para encobrir o procedimento mais ignóbil, a traição mais infame!»

A Chica caíra sentada no sofá, comprimindo o peito com ambas as mãos, como se a tivessem ferido de morte. De repente, n'um movimento brusco, atirou o rosto livido, transmudado, para as almofadas, ficando ali quasi de bruços, anniquilada, immovel, notando-se-lhe apenas no altear das costas a respiração alta, ofegante.

Elle avançou dois passos e proseguiu em crescente exaltação, rouco de fúria: «Vi, vi eu, ninguém m'o disse. Espreitei e vi tudo. Quem me havia de dizer tal cousa ! Que havia de ver esta mulher em dias successivos sair de casa do amante, com o ar esquivo de quem tem a consciência da infâmia, mas adquirindo logo a segurança de quem insiste no delicto sem arrependimento ! Não quero nem saber o nome do infame. Também para esse, se entra a serio na aventura, chegará o momento das desillusões e estarei vingado. Voto esse homem ao maior despreso. A sociedade que julgue como quizer o meu procedimento ... Far-se-á sobre isto o menor ruido possível. Não daremos pasto ao escândalo. A senhora entrará n'um recolhimento onde lhe darei uma mezada modesta, dentro dos meus recursos. Já sabe que sou pobre; mas creio que nunca lhe faltou nada. Não foi a necessidade, como a tantas, que a desviou do caminho da honra. Eu parto para o Brazil, a ganhar dinheiro. Se chegar a ser rico, talvez ainda possa atordoar-me na voragem do luxo, já que felicidade de outra ordem não pôde existir para os homens honrados ...»

O António atalhara-se, talvez pasmado d'aquelle silencio pesado, em meio do qual a sua voz retumbava como um secco estampido de tempestade assoladora. Esperara que a Chica protestasse, que se defendesse, ou que se lhe arrojasse de joelhos pedindo perdão. Tinha então preparada a mais saborosa vingança, arremessando sobre aquella cabeça altiva toda a immensidade do seu desprezo.

Mas ella não se movia, nem parecia disposta a encarar-se com elle, sempre com o rosto mergulhado nas almofadas macias. Devia ser o aniquillamento da vergonha, talvez já um principio de remorso.

E elle, imbecil! Como tinha confiado n'aquella ingrata ! Como lhe tinha querido e como lhe queria ainda ! E o impossivel entre ambos!

O desmoronar de toda a sua existência! Porque elle, sem a Chica, o que era ? para que queria a vida ? Fugido d'ella para sempre, onde iria parar ?

Sentiu que lhe vinha um soluço e, impondolhe uma vontade de ferro, fel-o retroceder. Queria ao menos esquivar-se a parecer ridículo.

Era insustentável aquella situação em que estava soffrendo atrozmente. Até áquelle momento tinha conservado a esperança de que ella se levantasse altiva a desmentil-o. Puerilidade! Não vira elle tudo, mettido dois dias em casa do Rocha ? Não a vira entrar receiosa em casa do amante, e sair três horas depois com o ar timido do delinquente que busca occultarse ? Oh! era horrível! horrível! Cria ás vezes estar sonhando. Ella, apparentemente tão boa, tão digna, que até parecera respeitável ao Sequeira, desilludido de todas as mulheres! E a traidora apartando de casa o amigo, para mais livremente poder entregar-se ao amante! Quem seria o infame? um aristocrata talvez... talvez algum diplomata, antigo adorador. Seguiria o prudente conselho do Sequeira, não procurando nem sequer saber-lhe o nome. Para quê? N'estes casos o único procedimento ajuizado era evitar o escândalo. Se fosse d'esses maridos que tem valor para matar as mulheres, talvez pudesse sentir algum desafogo immediato. Mas o longo colloquio com o Sequeira desviara-o completamente d'esse rume; paralysara-lhe a vontade para o desforço. Ainda que elle suppunha que nunca poderia ter matado a Chica...

E ella sempre com o rosto escondido entre as almofadas, só mais serena agora, como se tivesse adormecido.

Era indispensável terminar de qualquer modo aquella scena ridícula, absurda.

Erguendo desmedidamente a voz, para disfarçar a commoção, o António resumiu, violento :

«Quanto mais depressa liquidarmos isto, melhor para ambos. Prepare as suas cousas para entrar amanhã n'um convento. N'essa situação, em quanto eu viva, póde contar com uma mezada modesta. Não lhe desejo remorsos equivalentes ao mal que me fez. Guardo muito respeito, muita veneração pela memoria de seu pae... »

De repente ella ergueu-se hirta, livida, com o olhar fulminante. Alteando convulsamente os braços n'um gesto imponente: «Oh! não não... Por piedade!... Por Deus!... Não pronuncie esse nome sagrado... Não consinto que envolva em tamanha ignominia o nome de meu pae...» -- e, apertando os ouvidos entre as duas mãos abertas, saiu da sala correndo, tropeçando nas cadeiras...

Elle ficou estático, atónito. E, não sabendo que outro partido tomar, pôz o chapéu, atirou com a porta e foi para casa do Sequeira desabafar, contar o succedido.

VII

Quando, na manhã seguinte, o António voltou a casa intimamente sobresaltado com a idéa de encontrar-se cara a cara com a mulher, aguardavam-no ali impressões inesperadas.

A criada, com os olhos vermelhos, lacrimosos, estava só. -- A senhora tinha saido na véspera de tarde, levando uma mala de roupa e não voltara.

«Bruto! Animal!» -- vociferou o António, aos murros ao peito que parecia desassisado -- « Claro ! Deixei-a livre, fugiu com o amante... Já não podiam enganar-me !... Mas hei-de agarral-os ! Olá ! ... Mato-os ... Mato-os ... E depois que me venha o Sequeira cantar philosophias!» -- e sentando-se desesperado, aniquilado -- « Ora isto, isto ! ... O que é a vida de um homem nas mãos de uma mulher sem miolos!» -- e voltando-se subitamente contra a criada, em crescente exaltação: «Mas ella, essa canalha, nem sequer me deixou um recado, nada? !... Fale, mulher. Não vê como estou? Diga tudo o que souber, ande... !

A rapariga enxugou as lagrimas ao aventaL Depois, n'um trabalhoso esforço para serenarse, para emittir claras as palavras : «A senhora, coitadinha, andou ahi toda a tarde que mettia mesmo dó. De comer, nada. Nem á mesa se sentou. O que fez foi andar a arrumar tudo. O fato do senhor antão foi todo dobradinho nas gavetas, todo posto por ordem... E lagrimas como punhos. Nem quando foi da morte do paesinho... Aquillo era uma pena mais grande ! Uma angustia ! ... Eu, á hora que me pareceu, fiz -lhe chá e prantei-lho com umas bolachinhas ahi no gabinete. Nas bolachas quem diz lá que tocou ! Mas ó despois, quando eu entrei, disse-me assim p'ra mim. com aquella vosinha de santa : O chá fez-me bem, Flora. Muito obrigada. -- Eu larguei a chorar como uma cascata. Coitadinha ! Era a ultima coisa que tomava na sua casa. Sempre tão amiguinha do chá ! ... E vae ella antão volta-se p'ra mim e diz: Vamos, Flora... São coisas que tem de acontecer. .. A gente no mundo nunca sabe para o que stá. Tenho de me ir embora de casa. -- E afogou-se com os soluços, que nem já podia falar... Eu puz-me a modo tonta da cabeça. Prantou-se-me aqui um nó» -- e indicava o gorgomilo. -- «Éramos ahi duas Manga nelas... E a despois inda me disse assim: Se vocemecê ficar com o senhor, trate-lhe bem de tudo : já sabe os costumes. -- Mas isso lá, falo franca. Deus me livrasse ! Ficar em casa, sem a minha senhora... Antes a morte !... Subiume cá de dentro não sei quê, e agarrei-me a cila a querer-lhe beijar a mão... Foi antão quando aquella santinha me abraçou e beijou na cara. E eu desato a dizer-lhe : E a minha senhora para donde é que se vae ? -- E ella antão responde-me por estas palavras : Eu vou d'aqui para muito longe, Flora -- e correu para o quarto, que parecia que estalava. E já a gente, a bem dizer, não tornou a falar senão quando foi por via de metter o Saraphim no saco e eu descer com elle á carruagem... »

-- «Ella então levou o gato?» -- perguntou o António assombrado.

-- «Diz que o queria porque o seu paesinho era muito amigo de gatos e sempre fazia muitas festas a este... Também levou o retrato grande do paesinho que estava dependurado na sala... Foram as duas cousas, tirante a roupa do corpo... »

O António quedou-se um momento olhando a criada attonito. Depois, n'um ímpeto: «Você já devia ter percebido que a senhora me atraiçoava, que tinha um amante... Vocês são todas boas !... »

A rapariga enxugou as lagrimas ao avental com arremesso, com raiva. «Eh, senhor! cale-se lá. Isso até e otfender a Deus... Ella coitadinha, que não tinha mais pensamento que era para o seu marido... Quando o senhor esteve na provincia, dia que lhe faltasse carta, logo se lhe conhecia na cara... O outro bem se atirava, lá isso!... A gente faz-se tansa, mas inda não é cega de todo. Mais derretido!... Mas ella, coitadinha, umas trombas! E é que não descançou em quanto não pregou com elle de casa para fora ...»

-- «Você de quem está ahi a falar, mulher? Você endoideceu?... Quem diabo vem a ser esse outro?»

-- «Com o que elle agora vem! Não querem lá ver ! Como se aqui entrasse mais homem que aquelle!... Pois está de ver... O senhor Sequeira... essa boa firma...»

-- «Você perdeu a cabeça, mulher; você perdeu o juízo.»

-- «Diga-lhe que sim e deixe... Que, assim como assim, agora já não tem que guardar...»

-- «Oh! mulher do diabo... Cale-se... Isso é a maior das calumnias... Um disparate sem pés nem cabeça... Oh! senhores! Isto é para endoidecer... Essa patifaria inventaram-na para me desorientar, para occultar melhor a verdade. Vê-se que está bem ensinada, você... Sua... Você não sabia que a senhora saía todos os dias, e estava fora de casa um ror de horas? Você não sabia isto?... E porque me não avisou, sua desavergonhada?»

A Florencia levara como uma estocada. Tinha os olhos cravados testamente no chão. Os braços hirtos completavam a attitude do espasmo.

-- «Ahi está! Ahi está!» -- bradou o António, lançando-se a ella e sacudindo-lhe brutalmente um braço. -- «Quanto lhe pagaram, sua alcoviteira sem vergonha, para que você se calasse ?»

A rapariga era possante. O António, ainda bem não pronunciara as ultimas palavras, tinha ido parar a três metros de distancia com o repellão decidido que ella lhe deu, rosto irado, olhos deitando chispas.

-- «Arreda! Nada de pôr mão no púlpito, eh?» -- e logo, mais fera: «Ah! elle é isso? Pois espera, que eu te conto... O segredo d'ella haverá eu de o guardar até que ella me soltasse a lingua, que assim lh'o tinha promettido. Mas ha casos que podem mais que as leis... E, já agora, que importa estar com aquellas ? Agora já tudo se tem que saber... A minha senhora, se saía todos os dias, não era p'ra nenhuma vergonha. Ia a casa de uma senhora que lhe chamam a viuva Cunha, ali ao cabo da rua dos Navegantes... Se o senhor quizer, tambem lhe ensino a casa ... Tinha três horas de lição a quatro meninas... Mais lindas e mais bem educadas ! Só a amizade com que tratavam cá a senhora! Queriam-lhe mais!... E ella, coitadinha !... desde que ganhava os trinta mil réis parecia outra. Já as contas da casa andavam em ordem e como devia ser. Acabou-se aqueila ralação de virem as contas á porta, e ella de mil cores, sem saber aonde havia de o ir buscar... O senhor era tudo andar por fóra, não dava fé de nada... Com tanto que aqui encontrasse boa mesa e boa cama... Andava mais estifeita! Ate a mim me augmentou dois mel réis na soldada, sem lh'o eu pedir. Eu, Deus me livre! E já me tinha promettido um vestido preto para a Semana Santa ...»

A esta recordação economico-piedosa, as lagrimas outra vez affluiram abundantes aos olhos da Florencia -- Este era o verdadeiro nome de baptismo -- Tapou a cara com o avental e rompeu em soluços.

Toda esta scena decorria n'um vestíbulo de modestas dimensões, á entrada.

O António tinha-se sentado. Parecia idiotisado. Olhava n'um espasmo para aquelle pranto da criada. Os braços pendiam-lhe aos dois lados da cadeira, com leve tremor nas mãos estendidas.

Expandida a sensibilidade, a rapariga, quando enxugou os olhos e os abriu á realidade, percebeu que a situação tinha mudado de cabo a cabo. A fera, em lethargo, jazia subjugada. A força estava agora toda do lado d'ella.

Seria lógico que se abrigasse em Flora um animo incapaz de abusar da força ? O que ella fez, com o olho a luzir no secreto goso da vingança, foi atirar-se com unhas e dentes ao inimigo prostrado.

-- «A final de contas, a culpa de tudo quem a tem é o senhor» -- e as palavras vinham-lhe soltas, aceradas, mortificantes. -- «Claro! Com esse geniaço que ninguém lhe pode ir á mão! Ella, coitadinha, se andava com estes esconderijos -- e bastante lhe custavam ! -- era para ver se prantava as coisas a direito, sem o senhor ir ás do cabo... Elle bem claro estava... Em que cabeça cabe que se viva como se vivia n'esta casa só com o que o senhor ganha? Bons vão os tempos para esses milagres ! Tudo cada vez mais caro ! Os impossíveis ninguém os pôde fazer. Ella bem se consumia, a ver que o rol não subisse. Mas qual! Depois, se não lhe punha as comidas finas e variadas, era logo o senhor a queixar-se. E, p'ra mais ajuda, o outro sempre aqui prantado a comer do bom e do melhor... Está visto!... para aquella prenda! ... Olhe, pois o que lhe afianço é que, se a minha senhora tivesse querido, lh'a tinham pregado os dois, ao senhor, que era um regalo...»

N'um violento estremeção o António levantou-se. Tinha-se mal nas pernas. Cambaleava como ébrio.

-- « Oh ! mulher, pelo amor de Deus, suma-se d'aqui... Parece que gosa em me atormentar. Maldita, maldita creatura!» -- e entrou arrebatadamente no gabinete, fechando a porta com estrondo.

Ali deu-lhe logo na vista uma carta deixada, sem companhia de nenhum outro objecto, sobre a mesinha em que os dois tantas vezes tinham tomado chá juntos. Era dirigida a António Pinheiro. A letra era a letra da Chica, bastante alterada.

Com a carta na mão, receioso de abril-a, o António caiu no sofá, exactamente no mesmo lugar em que ella estivera na véspera soffrendo o ataque brutal que lhe dirigira. E o que devia ter soffrido então !

Emfim, rasgou o sobrescripto e leu mentalmente:

«António:

Realisou-se em circumstancias que eu nunca podia ter previsto o desenlace que eu via imminente, desde a morte do meu pobre pae. Não podíamos entender-nos : era uma triste verdade cada vez mais clara.

Por mim, procurei sempre a tua felicidade sem a conseguir. Era uma lucta ingrata. Mas a própria lucta se tornou agora impossível desde que deixámos de respeitar-nos mutuamente. Pôde ainda viver-se em commum, quando faltou o carinho, quando desappareceu o amor ; não quando se extinguiu o respeito.

A essa desgraça não é applicavel o remédio da paciência. Acabaram-se então todos os recursos. Não ha nada a que apellar.

Escrevo-te serena, resignada com a minha vida. Não aceito a mezada que me offereces porque quero d'aqui em diante viver exclusivamente do meu trabalho, crendo que honro assim a memoria de meu pae, cujo nome continuarei a usar. E' uma resolução inabalável. Nunca poderei desistir d'uma independência que me custou tão cara e que deve ser d'aqui em diante o maior apoio da minha vontade.

E' lamentável a desordem em que se encontra o teu espirito. Se esse estado é devido á influencia de amigos íntimos, aparta-te d'elles. Demais, o mundo encerra tanta traição !

O plano de uma viagem parece-me excellente no teu caso. Outros objectos virão substituir os tão desagradáveis que tens agora no pensamento. Deves aceitar esse recurso com a fortaleza com que se aceita o inevitável.

Francisca de Mello. »

Anhelante, sem saber o que buscava, o António passou ao quarto de cama, todo cheio de memorias d'ella. Era aquillo possivel! Não voltaria! Ausente para sempre! E elle como iria viver agora?

Estrebuchando n'uma violenta crise nervosa, atirou-se de bruços sobre a cama d'ella, soluçando desapoderamente, beijando com frenesi a almofada.

Tudo acabado!

Conhecia-a bastante para saber que tinha diante de si o irreparável.

Aquillo fora o desabar completo do seu mundo.


Holder of rights
ELTeC conversion

Citation Suggestion for this Object
TextGrid Repository (2023). Portuguese ELTeC Novel Corpus (ELTeC-por). A vida por um prejuízo: Edição para o ELTeC. A vida por um prejuízo: Edição para o ELTeC. European Literary Text Collection (ELTeC). ELTeC conversion. https://hdl.handle.net/21.11113/0000-000F-FAF5-3